Projeto Traduções LIVRES
A profunda amnésia de nossa consciência nacional
Atualizado: 6 de jun. de 2020
Não pode haver cura na América sem um acerto de contas honesto com a injustiça racial - mas sabemos disso há muito tempo.
Link:
https://newrepublic.com/article/157935/deep-amnesia-national-conscience
Veículo: newrepublic.com
Data de publicação: 31/05/2020
Autorx: Osita Nwanevu
Título original:
The Deep Amnesia of Our National Conscience
There can be no healing in America without an honest reckoning with racial injustice—but we have long known that.
Traduzido por/Translated by: Letícia Palhares
Na sexta-feira (29/05/2020), as prisões de Omar Jimenez, da
CNN, e sua equipe que cobriam os protestos contra a morte de
George Floyd, em Minneapolis, foram transmitidas ao vivo, com
reações das âncoras da emissora. “Não sabemos por que eles
estão sendo presos” disse Alisyn Camerota, do New Day, aos
espectadores em determinado momento. “Não os estão dando
nenhuma explicação, pelo que sabemos, por que estão sendo
presos. Não sabemos porque eles estão sendo algemados e
levados. É permitido a eles reportar as manifestações que
acontecem agora, mas, por algum motivo, a polícia do estado
decidiu que eles precisam estar presos.”
“E, para deixar claro, Alisyn,” afirmou o outro apresentador John
Berman, “estando eu em meio a protestos como esse, nunca vi
algo assim. Nunca vi algo assim”.
É provável que ele realmente esteve. Há quase seis anos atrás,
Wesley Lowery, do The Washington Post e Ryan Reilly, do The
Huffington Post, foram detidos pela polícia de Ferguson, no
estado do Missouri, e o vídeo de suas prisões também viralizou.
Nenhum dos incidentes marca a primeira vez em que a força
policial obstruiu ou afastou jornalistas. Mas é assim que a
memória pública tende a funcionar – memorizamos através das
gravações. Certos trechos do passado estão sempre acessíveis
(1776, 1865, 1968), mas todo o resto é apagado para dar espaço
ao infinito presente. Não há como dizer, realmente, o que seria
de nós, como país, se estivéssemos dispostos e capazes de
absorver tudo na íntegra, se pudéssemos revisar toda a extensão
do que somos ou já fomos. Mas, provavelmente, mais delegacias
policiais seriam incendiadas.
Outra parte que falta da gravação: em 2014, 250 empresas em
Ferguson e comunidades vizinhas, foram impactadas por
danificação de propriedade ou perdas durante as manifestações
que ocorreram lá. Quando um grande júri se recusou a indiciar o
policial que matou Michael Brown, em novembro, pelo menos 25
prédios foram incendiados. Os custos financeiros e sociais dos
protestos para a cidade foram reais. No entanto, as imagens que
perduraram muito além da ocasião foram de policiais avançando
contra manifestantes e jornalistas. Demonstrações de força
excessiva contra manifestantes que protestavam contra o uso de
força excessiva e contra os repórteres que trabalhavam para
reportar tudo.
Aquelas noites e as ondas de ação e organização que seguiram,
mexeram com a opinião pública sobre raça e policiamento de
forma tão dramática que até os políticos da direita (membros de
um movimento político construído parcialmente sobre as
reações aos tumultos do fim dos anos 60 e sobre a promessa de
policiamento mais severo) agora oferecem regularmente
denúncias de brutalidade policial, pegos entre os preconceitos
de seus constituintes de base e a sensibilidade aflorada do
público em geral à injustiça racial. Considere o tom oscilante do
presidente nesta semana: um homem que argumentou que a
polícia deveria ser mais abusiva com as pessoas que detém em
sua última campanha e revogou as restrições da lei e
supervisionou o cargo.
Na quarta-feira, ele chamou a morte de Floyd de “triste e
trágica” e disse que pediu ao FBI e ao Departamento de Justiça
para investigar o caso. Na manhã da sexta-feira, ele ameaçou
reprimir as manifestações em Minneapolis com militares.
“Qualquer dificuldade e assumiremos o controle”, escreveu ele,
“mas quando o saque começa, o tiroteio começa”. Foi
observado, quase que imediatamente, que George Wallace fez
uma observação semelhante.
Mais tarde na sexta-feira, Trump defendeu-se referenciando um
assassinato ocorrido em meio às manifestações: “saques levam a
tiros, e foi por isso que um homem foi baleado e morto na noite
de quarta-feira em Minneapolis”. E finalizou uma entrevista
coletiva sem nenhuma referência às demonstrações. Mas ele
iniciou uma discussão em mesa redonda com executivos sobre a
reabertura da economia no final do dia com condolências à
família de Floyd e um pedido ao Departamento de Justiça para
que acelerem a investigação. “É muito importante que tenhamos
protestantes pacíficos e que apoiemos os direitos dos
protestantes pacíficos”, acrescentou. “Não podemos permitir
que situações como a de Minneapolis desçam ainda mais na
anarquia e no caos desgovernado”.
No sábado, a oscilação parou em uma posição que
provavelmente será a linha seguida pelo partido. Aqueles que
tomaram as ruas esta semana, disse Trump, foram “’grupos
organizados’ que nada têm a ver com George Floyd,” e
autoridades democratas foram fracas em seu combate. “O
prefeito Jacob Frey de Minneapolis, nunca será confundido com
o falecido general Douglas McArthur ou o grande lutador
General George Patton,” ele postou em seu Twitter. “Como é
que todos estes lugares que se defendem tão mal são
administrados por democratas liberais? Seja duro e lute (e
prenda os maus). FORÇA!”. Em resumo: o presidente ficou triste
com o uso de força desordenada contra George Floyd e apoiaria
uma resposta desordenada militar ou quase militar a
saqueadores vândalos em Minneapolis e outros lugares.
Em alguns cantos, teme-se que esta mensagem possa ressoar
com eleitores – assim como se temia que a direita capitalizasse
as atividades de antifascistas e confrontos hostis com
autoridades de Trump durante as eleições de meio de mandato,
que os democratas acabaram por varrer. É claro que a reação
branca não deve ser descartada como força política. De fato, não
parece trivial que a campanha presidencial de Donald Trump e a
jornada para o centro da vida americana tenham começado
menos de um ano após os protestos em Ferguson. Mas, no geral,
a história de violência e agitação neste país oferece poucas
doutrinas diretas. Os tumultos em Stonewall marcaram um novo
começo para um movimento de direitos civis. Os tumultos que
seguiram ao assassinato de Martin Luther King, depois de
estimular a aprovação do último grande ato de direitos civis,
trouxeram o ápice de outro ao fim.
Um artigo recente do cientista político de Princeton, Omar
Wasow, descobriu que a violência iniciada por manifestantes
naquele período reforçou o apoio a medidas repressivas e pode
ter contribuído para a vitória de Nixon nas eleições de 1968. Em
outro artigo, de Ryan Enos, de Harvard, Aaron Kaufman, da
Universidade de Nova Iorque, e Melissa Sands, da UC Merced,
descobriu que os tumultos em Los Angeles após o espancamento
de Rodney King em 1992, levaram ao registro e mobilização de
eleitores democratas e aumentaram o apoio local às iniciativas
políticas liberais. À direita, a lista de assassinos e supostos
terroristas inspirados pela retórica racista e anti-imigrante nos
últimos anos é longa demais para ser citada mesmo que
brevemente. Nenhum deles derrubou Donald Trump e seu
partido como entidades políticas, embora provavelmente,
também não os tenham ajudado muito. Um tiroteio em massa
realizado por um ativista pró-vida deixou três mortos e nove
feridos em 2015, e a Federação Nacional do Aborto documentou
mais de 400 casos de vandalismo contra provedores e
defensores do aborto na última década. Ambos os fatos têm sido
irrelevantes para integrar o discurso do aborto e a política
eleitoral.
O máximo que se pode ser tirado disso de maneira decisiva é que
os fatores que tornam a ação radical produtiva ou
contraproducente, eficaz ou ineficaz, são complexos. As maiorias
das pessoas que testem este cálculo estarão longe do ponto em
que a ação realmente acontece, e os atores podem ter um
sentido totalmente diferente do que o sucesso político – no
momento ou no agregado – significa realmente. Na noite de
quinta-feira, um distrito foi queimado e a polícia fugiu. Para as
pessoas que o queimaram, isso foi uma vitória, de certa maneira,
contra uma das instituições públicas menos responsáveis
perante o público e responsiva à vontade democrática.
Apesar de toda a conscientização levantada sobre as inequidades
do sistema de justiça criminal e de todas as reformas aprovadas
ou tentadas na última década, o policiamento nos Estados
Unidos não mudou fundamentalmente. Os assassinatos policiais
não diminuíram e as câmeras corporais conseguiram
principalmente fornecer evidências de que os abusos ainda são
comuns. Fizemos um progresso modesto nas instituições
carcerárias, para onde as pessoas são enviadas quando a polícia
termina e reduzimos, aqui e ali, a lista de coisas pelas quais a
polícia pode enfrentar alguém. Mas se você for confrontado pela
polícia – mesmo se estiver desarmado e, principalmente, se for
negro – ainda existe uma chance de você ter a garganta
pressionada no asfalto até morrer. É sobre isso que tratam os
protestos.
O que é preciso para “curar”? Provavelmente não são os pedidos
pela cura – já temos muitos deles. As exortações ao voto são
marginalmente melhores, embora Minneapolis, graças à grande
parte dos votos dos residentes negros que estão sendo
lecionados, seja uma cidade já governada pelo partido
ostensivamente mais comprometido com as reformas policiais,
como é o caso do Minnesota em sua maior parte. E nosso
sistema político federal não é uma democracia igualitária, por
mais que gostemos de fingir ser. Às vezes, porém, este sistema
apresenta oportunidades, e se vamos avançar em breve para
qualquer “cura” possa significar, em última análise, depende se o
Partido Democrata não apenas prevalece em novembro, mas
adote um programa de políticas adequado às necessidades da
comunidade negra.
Essas políticas devem incluir esforços não apenas para reformar,
mas fundamentalmente para repensar e reformular a aplicação
da lei neste país. Elas devem também incluir investimentos
federais massivos em habitação, educação e iniciativas de
empregos e anti-pobreza que possam abordar as desigualdades
estruturais que alimentam a raiva e o desespero. Essa foi
exatamente a abordagem proposta pela Comissão Kenner após
os tumultos de 1967 – curar significava a adoção de programas
“em uma escala igual à dimensão dos problemas”.
“Este programas exigirão níveis sem precedentes de
financiamento e desempenho”, dizia o relatório, “mas eles não
investigam mais profundamente nem exigem mais do que os
problemas que os provocaram. Não pode haver maior prioridade
para a ação nacional e nenhuma reivindicação maior na
consciência da nação”.
Mais de meio século depois, apesar dos avanços óbvios, a
consciência nacional tem assuntos pendentes a resolver. A
diferença da riqueza racial é um abismo enorme. Escolas e
comunidades inteiras ao redor do país se segregaram ou nunca
foram totalmente integradas. E homens como George Floyd
estão sendo desproporcionalmente abusados e assassinados
pela polícia. Deveríamos fazer melhor. Mas também não
podemos nos iludir de que fazer melhor traria calma e
tranquilidade às nossas ruas e à nossa política. A reação branca
está, novamente, entre as forças mais potentes da vida
americana; a última década e a nossa longa história coletiva –
toda a gravação – deve garantir-nos que a busca pela justiça
produzirá suas próprias insurreições. Enfrentamos uma escolha
não entre dor e uma paz fácil, mas entre a dor de feridas
deixadas sem tratamento e a dor de uma recuperação longa e
instável.
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