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Governos e OMS alteraram política do COVID-19 baseado em dados suspeitos de pequena empresa dos EUA

A Surgisphere, cujos funcionários parecem incluir um escritor de ficção científica e um modelo de conteúdo adulto, forneceu um banco de dados por trás dos estudos do Lancet e do New England Journal of Medicine sobre a hidroxicloroquina.

 

Veículo: Theguardian.com

Data de publicação: 03/06/2020

Autorx: Melissa Davey, Stephanie Kirchgaessner e Sarah Boseley

Título original: Surgisphere: governments and WHO changed Covid-19 policy based on suspect data from tiny US company

Surgisphere, whose employees appear to include a sci-fi writer and adult content model, provided database behind Lancet and New England Journal of Medicine hydroxychloroquine studies.

Traduzido por/Translated by: Rafaela Morelli

 

A Organização Mundial da Saúde e vários governos nacionais mudaram suas políticas e tratamentos de Covid-19 com base em dados defeituosos de uma empresa de análise de dados de saúde pouco conhecida nos Estados Unidos, colocando em cheque também a integridade dos principais estudos publicados em algumas das revistas médicas de maior prestígio do mundo.


Uma investigação do The Guardian pode revelar que a empresa norte-americana Surgisphere, cujos funcionários parecem incluir um escritor de ficção científica e um modelo de conteúdos adultos, forneceu dados para vários estudos sobre o Covid-19, em co-autoria de seu diretor executivo, mas até o momento, não conseguiu explicar adequadamente seus dados ou sua metodologia.


Os dados que a empresa afirma ter obtido legitimamente de mais de mil hospitais em todo o mundo formaram a base de artigos científicos que levaram a mudanças nas políticas de tratamento do Covid-19 nos países da América Latina. A empresa também estava por trás de uma decisão da OMS e institutos de pesquisa em todo o mundo de interromper os ensaios do controverso medicamento hidroxicloroquina. Na quarta-feira, a OMS anunciou que esses ensaios seriam retomados.


Duas das principais revistas médicas do mundo - o Lancet e o New England Journal of Medicine - publicaram estudos com base nos dados da Surgisphere. Os estudos possuem co-autoria do diretor executivo da empresa, Sapan Desai.


No final da terça-feira, após ser abordado pelo The Guardian, o Lancet divulgou uma "expressão de preocupação" sobre o estudo publicado. O New England Journal of Medicine também emitiu um aviso semelhante.

Uma auditoria independente da proveniência e validade dos dados foi encomendada pelos autores não afiliados ao Surgisphere por causa de “preocupações levantadas sobre a confiabilidade do banco de dados”.


O The Guardian descobriu que:


  • Uma pesquisa do material disponível ao público sugere que vários funcionários do Surgisphere têm pouco ou nenhum dado ou formação científica. Um funcionário listado como editor de ciências parece ser um autor de ficção científica e fantasia cujo perfil profissional sugere que escrever é seu trabalho em período integral. Outro funcionário listado como executivo de marketing é um modelo e hostess de eventos, que também atua em vídeos para organizações.

  • A página do LinkedIn da empresa tem menos de 100 seguidores e na semana passada listou apenas seis funcionários. Isso foi alterado para três funcionários na quarta-feira.


  • Embora a Surgisphere alegue executar um dos maiores e mais rápidos bancos de dados hospitalares do mundo, ela quase não tem presença online. Seu perfil no Twitter tem menos de 170 seguidores, sem postagens entre outubro de 2017 e março de 2020.


  • Até segunda-feira, o link "entrar em contato" na página inicial da Surgisphere redirecionava para um modelo WordPress de um site de criptomoeda, levantando questões sobre como os hospitais poderiam facilmente entrar em contato com a empresa para ingressar em seu banco de dados.

  • Desai foi nomeado em três processos por negligência médica, não relacionados ao banco de dados da Surgisphere. Em entrevista ao The Scientist, Desai descreveu as alegações como "infundadas".

  • Em 2008, Desai lançou uma campanha de crowdfunding no site Indiegogo, promovendo um "dispositivo da próxima geração para melhoramento humano que pode ajudá-lo a alcançar o que você nunca imaginou ser possível". O dispositivo nunca foi concluído.

  • A página da Wikipedia de Desai foi excluída após o surgimento de questões sobre a Surgisphere e sua história, levantadas pela primeira vez em 2010.


Em uma coletiva de imprensa na quarta-feira, a OMS anunciou que retomaria seu teste global de hidroxicloroquina, depois que seu comitê de monitoramento de segurança de dados constatou que não havia maior risco de morte para os pacientes da Covid.


O diretor geral da OMS, Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse que todas as partes do estudo Solidarity, que está investigando uma série de possíveis tratamentos medicamentos, iriam continuar. Até agora, mais de 3.500 pacientes foram recrutados para o estudo em 35 países.


"Com base nos dados de mortalidade disponíveis, os membros do comitê recomendaram que não havia motivos para modificar o protocolo do estudo", disse Tedros. "O grupo executivo recebeu esta recomendação e endossou a continuação de todos os ramos do estudo Solidarity, incluindo a hidroxicloroquina".


Dúvidas sobre o estudo da Lancet


Questões em torno da Surgisphere vêm crescendo na comunidade médica nas últimas semanas.


Em 22 de maio, o Lancet publicou um estudo de grande sucesso, que descobriu que a droga antimalárica hidroxicloroquina, promovida por Donald Trump, estava associada a uma maior taxa de mortalidade em pacientes de Covid-19 e a problemas cardíacos agravados.


Trump, para grande consternação da comunidade científica, divulgou publicamente a hidroxicloroquina como uma "wonder drug" (expressão utilizada para denotar um medicamento novo muito eficiente), apesar de não haver evidências de sua eficácia no tratamento do Covid-19.


O estudo da Lancet, que listou Desai como um dos co-autores, afirmou ter analisado os dados da Surgisphere coletados de quase 96.000 pacientes com Covid-19, admitidos em 671 hospitais em seu banco de dados de 1.200 hospitais em todo o mundo, que receberam hidroxicloroquina sozinha ou em combinação com antibióticos.


As descobertas negativas foram notícia global e levaram a OMS a interromper o braço da hidroxicloroquina em seus testes globais.


Mas apenas alguns dias depois, o The Guardian Australia revelou erros flagrantes nos dados australianos incluídos no estudo. O estudo afirmava que os pesquisadores obtiveram acesso aos dados através da Surgisphere de cinco hospitais, registrando 600 pacientes australianos com Covid-19 e 73 australianos mortos a partir de 21 de abril.


Porém, dados da Universidade Johns Hopkins mostram que apenas 67 mortes por Covid-19 foram registradas na Austrália até 21 de abril. O número não subiu para 73 até 23 de abril. Desai disse que um hospital asiático foi acidentalmente incluído nos dados australianos, levando a uma superestimação de casos no país. O Lancet publicou uma pequena retratação relacionada às descobertas australianas após a história do The Guardian, sua única alteração no estudo até agora.


Desde então, o The Guardian entrou em contato com cinco hospitais em Melbourne e dois em Sydney, cuja cooperação seria essencial para que o número de pacientes australianos no banco de dados fosse alcançado. Todos negaram qualquer participação nesse banco de dados e disseram que nunca ouviram falar da Surgisphere. Desai não respondeu a pedidos para comentar estas declarações.


Outro estudo utilizando o banco de dados da Surgisphere, novamente co-escrito por Desai, descobriu que a droga anti-parasitária ivermectin reduziu as taxas de mortalidade em pacientes graves de Covid-19. O estudo foi publicado online na biblioteca eletrônica da Social Science Research Network, antes da revisão por pares ou publicação em uma revista médica, e levou o governo peruano a adicionar ivermectina às diretrizes terapêuticas nacionais do Covid-19.


O New England Journal of Medicine também publicou um estudo de Desai revisado por pares com base em dados do Surgisphere, que incluiu dados de pacientes Covid-19 de 169 hospitais em 11 países da Ásia, Europa e América do Norte. Ele descobriu que medicamentos cardíacos comuns, conhecidos como inibidores da enzima conversora da angiotensina e bloqueadores dos receptores da angiotensina, não estavam associados a um risco maior de dano em pacientes do Covid-19.


Na quarta-feira, o NEJM (New England Journal of Medicine) e o Lancet publicaram uma expressão de preocupação com o estudo da hidroxicloroquina, que listou o respeitado cardiologista Mandeep Mehra como principal autor e Desai como co-autor.


O editor da Lancet, Richard Horton, disse ao The Guardian: “Dadas as questões levantadas sobre a confiabilidade dos dados coletados pela Surgisphere, emitimos hoje uma Expressão de Preocupação, aguardando investigação adicional.”


"Uma auditoria independente de dados está em andamento e acreditamos que esta revisão, que deve ser concluída na próxima semana, nos dirá mais sobre o status das descobertas relatadas no artigo por Mandeep Mehra e colegas".


A Surgisphere "surgiu do nada"


Uma das perguntas que mais intrigou a comunidade científica é como a Surgisphere, criada por Desai em 2008 como uma empresa de educação médica que publicava livros didáticos, se tornou a proprietária de um poderoso banco de dados internacional. Esse banco de dados, apesar de ter sido anunciado recentemente pela Surgisphere, possui acesso a dados de 96.000 pacientes em 1.200 hospitais em todo o mundo.


Quando contatado pelo The Guardian, Desai disse que sua empresa empregava apenas 11 pessoas. Os funcionários listados no LinkedIn foram registrados no site como ingressados ​​na Surgisphere apenas dois meses atrás. Vários deles não pareciam ter formação científica ou estatística, mas mencionam conhecimentos em estratégia, redação, liderança e aquisição.


James Todaro, que dirige o MedicineUncensored, um site que publica os resultados dos estudos com hidroxicloroquina, disse: “A Surgisphere surgiu do nada para conduzir talvez o estudo global mais influente nessa pandemia em questão de poucas semanas.”

"Não faz sentido", disse ele. "Isso exigiria muito mais pesquisadores do que afirma ter para que este expediente e [tamanho] de estudo multinacional seja possível".


Desai disse ao The Guardian: “A Surgisphere está no mercado desde 2008. Nossos serviços de análise de dados de assistência médica começaram na mesma época e continuaram a crescer desde então. Usamos muita inteligência artificial e machine learning (aprendizado de máquina, em tradução livre) para automatizar esse processo o máximo possível, que é a única maneira de uma tarefa como essa ser possível. ”


Não está claro, a partir da metodologia dos estudos que usaram os dados da Surgisphere, ou do próprio site da Surgisphere, como a empresa conseguiu estabelecer acordos de compartilhamento de dados com tantos hospitais em todo o mundo, incluindo aqueles com tecnologia limitada, e reconciliar idiomas e sistemas de codificação diferentes, mantendo-se dentro das regras regulatórias, de proteção de dados e de ética de cada país.


Desai disse que a Surgisphere e seu sistema de gerenciamento de conteúdo QuartzClinical fazem parte de uma colaboração de pesquisa iniciada "há vários anos", embora ele não tenha especificado quando.


"A Surgisphere serve como um agregador de dados e realiza análises desses dados", disse ele. “Nós não somos responsáveis ​​pelos dados de origem, portanto, a tarefa trabalhosa necessária para exportar os dados de um Registro Eletrônico de Saúde, convertê-lo no formato exigido pelo nosso dicionário de dados e anonimizar completamente os dados são realizados pelo parceiro do sistema de saúde.”


Isso parece contradizer a afirmação no site da QuartzClinical de que ela faz todo o trabalho e "integra com êxito seu registro eletrônico de saúde, sistema financeiro, cadeia de suprimentos e programas de qualidade em uma única plataforma". Desai não explicou essa aparente contradição quando o The Guardian o perguntou.


Desai disse que a maneira como a Surgisphere obteve dados “sempre foi feita em conformidade com as leis e regulamentos locais. Nós nunca recebemos nenhuma informação de saúde protegida ou informação identificável individualmente. ”


Peter Ellis, cientista chefe de dados do Nous Group, uma consultora internacional de gerenciamento que desenvolve projetos de integração de dados para departamentos governamentais, expressou preocupação pelo fato de o banco de dados da Surgisphere ser "quase certamente uma farsa".


"Não é algo que qualquer hospital possa realisticamente fazer", disse ele. "A anonimização não é apenas uma questão de tirar o nome dos pacientes, é um processo grande e difícil. Duvido que os hospitais tenham capacidade para fazê-lo adequadamente. É o tipo de coisa em que as agências nacionais de estatística têm equipes inteiras trabalhando há anos. ”


"Não há evidências online de que [a Surgisphere] possua algum software analítico há mais de um ano. Leva meses para que as pessoas procurem ingressar nesses bancos de dados, envolve placas de revisão de rede, pessoal de segurança e gerenciamento. Isso simplesmente não acontece com um formulário de inscrição e uma conversa.”

Nenhuma das informações do banco de dados de Desai ainda foi tornada pública, incluindo os nomes de qualquer um dos hospitais, apesar da Lancet estar entre os muitos signatários de uma declaração sobre compartilhamento de dados para os estudos Covid-19. O estudo da Lancet agora é disputado por 120 médicos.


Quando o The Guardian apresentou a Desai uma lista detalhada de preocupações sobre o banco de dados, os resultados do estudo e seus antecedentes, ele respondeu: “Continua havendo um mal-entendido fundamental sobre o que é nosso sistema e como ele funciona”.


"Há também uma série de imprecisões e conexões não relacionadas que você está tentando fazer com um claro viés para tentar desacreditar quem somos e o que fazemos", disse ele. "Não concordamos com sua premissa ou com a natureza do que você montou, e lamento ver que o que deveria ter sido uma discussão científica foi denegrido para esse tipo de discussão.”


"O pico da evolução humana"


Um exame do histórico de Desai constatou que o cirurgião vascular foi nomeado em três processos por negligência médica nos EUA, dois deles arquivados em novembro de 2019. Em um caso, uma ação movida por um paciente, Joseph Vitagliano, acusou Desai e Northwest Community Hospital em Illinois, onde trabalhou até recentemente, de ser “descuidado e negligente”, causando danos permanentes após a cirurgia.


O Northwest Community Hospital confirmou que Desai trabalhava lá desde junho de 2016, mas renunciou voluntariamente em 10 de fevereiro de 2020 "por motivos pessoais".


"Os privilégios clínicos do Dr. Desai com o NCH não foram suspensos, revogados ou limitados pelo NCH", disse uma porta-voz. O hospital se recusou a comentar os processos por negligência. Desai disse na entrevista ao The Scientist que considerava qualquer ação contra ele "infundada".


O Brigham and Women's Hospital, a instituição afiliada ao estudo da hidroxicloroquina e seu principal autor, Mandeep Mehra, disse em um comunicado: “Independente da Surgisphere, os co-autores restantes dos estudos recentes publicados no The Lancet e no New England Journal of Medicine iniciaram análises independentes dos dados usados ​​em ambos os artigos após tomar conhecimento das preocupações levantadas sobre a confiabilidade do banco de dados.”


Mehra disse que rotineiramente destacou a importância e o valor de ensaios clínicos randomizados e que tais ensaios são necessários antes que se chegue a conclusões. "Aguardo ansiosamente a notícia das auditorias independentes, cujos resultados informarão qualquer ação adicional", disse ele.


A página agora excluída da Wikipedia de Desai dizia que ele possuía doutorado em direito e pós-doutorado em anatomia e biologia celular, além de suas qualificações médicas. Uma biografia de Desai em um folheto para uma conferência médica internacional diz que ele ocupou várias funções de liderança médica na prática clínica e que ele é "um faixa-preta do Seis Sigma".


Não é a primeira vez que Desai lança projetos com reivindicações ambiciosas. Em 2008, ele lançou uma campanha de crowdfunding no site indiegogo, promovendo um "dispositivo da próxima geração para melhoramento humano" chamado Neurodynamics Flow, que dizia "poder ​​ajudá-lo a alcançar o que você nunca imaginou ser possível".


"Com sua programação sofisticada, pontos ideais de indução neural e resultados comprovados, o Neurodynamics Flow permite que você atinja o pico da evolução humana", diz a descrição. O dispositivo arrecadou algumas centenas de dólares e nunca se tornou realidade.

Ellis, o principal cientista de dados do Nous Group, disse que não está claro por que Desai fez afirmações tão ousadas sobre seus produtos, dada a probabilidade de a comunidade global de pesquisa examiná-los.


“Minha primeira reação foi chamar a atenção da empresa dele,” disse Ellis. "Mas parece realmente óbvio que isso seria um tiro pela culatra."


Hoje, o professor Peter Horby, professor de doenças infecciosas emergentes e saúde global do Departamento de Medicina de Nuffield, Universidade de Oxford, disse: “Congratulo-me com a declaração do Lancet, que segue uma declaração semelhante do NEJM sobre um estudo do mesmo grupo. sobre drogas cardiovasculares e COVID-19.


“As preocupações muito sérias levantadas sobre a validade dos trabalhos de Mehra et al precisam ser reconhecidas e acionadas com urgência e devem trazer sérias reflexões sobre se a qualidade da editorial e da revisão por pares durante a pandemia foi adequada. A publicação científica deve acima de tudo ser rigorosa e honesta. Em caso de emergência, esses valores são necessários mais do que nunca. ”

 

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